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sexta-feira, 17 de abril de 2009

As curvas e o destino


O conto premiado no Concurso Contos de caminhoneiros da Mercedes Benz:


As curvas e o destino



Passei pelos quatro cantos da vida, viajei por todos os rincões desse país. Fui á maioria das fronteiras. Corri mundo, acelerei. Fiz tantas curvas que um corpo de mulher jamais poderia acompanhar e ainda assim não encontrei um amor. Procurei em postos, pousadas, vilas, cidades e estradas. Nunca encontrei ninguém. Claro que sempre me dei bem com as mulheres, sempre tive uma a meu lado. Às vezes mais de uma, tive até uma mulher que abandonei quando contou que estava grávida. Mas amor mesmo: nada.

Saindo de São Paulo indo pra Vitória um caminho louco de 365 curvas apertadas subindo pra Monlevade. Sempre que fazia esse caminho ficava endoidecido. Se dormir cai em ribanceira ou perde a carga. Estradinha perigosa essa. Era madrugada, meio vesgo de sono e muito cansado da viagem resolvi parar numa pousada para desarriar os ossos e tomar um café. Desci do trucão, levei comigo o trabuco e o balde d'água. Desanuviei os olhos com as costas da mão e caminhei para o banheiro fedorento do lado de fora da pousada. Fiz as necessidades e enchi o balde com uma água barrenta e voltei pro trução pra dar uma lavada no parabrisa. Ia voltar à pousada para encher a garrafa de café quando uma mão frienta e macia tocou meu ombro:


-Oi moço, me dá uma carona?

Como falar não pra uma vozinha melosa daquela?

- Pra onde você vai menina, num gosto de dar carona não, hein!

Tô sem rumo moço, mas quero chegar em Valadares pra achar minha mãe e pegar meus documentos.

Oh, nem pensar. Mulher na boléia de caminhão só dá problema. Nem vou pra Valadares.

Tem problema nada não moço. Me leva até Ipatinga que tá bom.

Espera aí fora que vou comer alguma coisa.


Fui à pousada e comprei o café, um pão com lingüiça pra mim e um pingado com pão de queijo pra dona.

Ela me esperava sentada nos degraus da boléia. Ao vê-la senti uma coisa que não tem explicação. Um calafrio, um vento lateral que me arrepiou a espinha. Abri a porta pra ela que logo se acomodou e começou a sorver o leite com café como se nunca tivesse bebido coisa melhor. Eu não via mulher há mais de 30 dias. Nunca me casei e minha casa era o trucão. Ela era mineira de Guanhães e a mãe desaparecera há 5 anos deixando pra ela apenas as roupas e uma foto.O pai ela nunca conheceu . A menina era novinha, se muito 20 anos. Contou de suas andanças tentando achar a mãe e do quanto tinha sofrido mundo afora. Um dia reconheceu a mãe na TV numa reportagem sobre os flagelados das enchentes. Estava em Valadares. Desde então 3 meses se passaram e ela, a filha tentava reencontrar a mãe e sem dinheiro, ia pedindo carona pra chegar a seu destino..


-O senhor é casado, tem filhos moço?

Sua voz era tão cândida quanto uma estrada sem buracos. Eu não respondi e perguntei de supetão:

- E você, não quis se casar não? Onde está seu marido?

-Não tenho marido, não tenho ninguém. Só quero encontrar minha mãe pra gente ficar junto. Vida sem família é triste né?


Acelerei por uns 100 km sem dizer uma palavra. Ela dormiu e se encostou no meu ombro. Parei o caminhão e a cobri com a manta de São Cristóvão que ficava atrás do banco. Nunca tinha coberto mulher nenhuma com aquela manta. Nem nunca tinha dado carona a uma mulher sem pensar em segundas intenções. Não sei porque, com essa era diferente. Gostei dela de cara.



Perto de Santa Bárbara um engarrafamento indicava acidente na pista. Um outro caminhão tinha passado pra outra pista e atingido um ônibus na lateral. Parei o trucão e ofereci ajuda, mas não havia muito o que fazer. Os passageiros do ônibus estavam do lado de fora e no tumulto alguém estava ferido no chão esperando por socorro. Fui ver. Era uma mulher de uns 50 anos. Ainda estava viva e olhando pra mim disse:

-Geromo, cuide bem da menina. Não abandone. Cuide dela. Ela é sua sorte e seu destino.

Senti isso dentro de mim. A senhora nem me conhecia e me chamava pelo nome dando conselho. Nem viu a moça no caminhão e falou dela. Estranho.O rosto dessa mulher não me era estranho. É isso, já a vi em algum lugar. Pouco depois ela faleceu. Senti um oco dentro de mim. Voltei pro caminhão e a menina ainda dormia. Arranquei e fui embora pensando nas voltas que a vida dá, nas palavras da senhora, no acidente, na menina. Gostava dela, me parecia tão próximo, tão carente. Decidi parar pra dormir assim que chegasse em Monlevade, mas não foi possível. Numa curva ao fim de uma descida forte meu trucão que sempre estava bem regulado perdeu os freios e fui obrigado a jogar a direção pra cima do barranco. O pneu chiou e o caminhão andou em um lado só e fez um L. Foi se arrastando por uns 50 metros e caiu ribanceira abaixo arrastado pelo peso da carga. No meio dessa bagunça a menina foi atirada pra fora da cabina e eu desmaiei.

Acordei no dia seguinte no hospital. Havia quebrado uma perna e perdido muito sangue. Não poderia dirigir por um bom tempo. Lembrei da menina e perguntei ao médico. Ela havia morrido esmagada. Não tinham conseguido documentos nem pistas de endereço. Encontraram apenas uma carta presa nas mãos dela e que me trouxeram pra ler:

“Alice, preciso ir embora. Você vai precisar do apoio do seu pai. Ele foi embora, mas logo você o encontrará. Ele é branco, alto e forte e tem uma tatuagem de São Cristóvão no peito. Olhos escuros como os seus e nunca me procurou desde que eu ainda te esperava. Ele se foi, mas sei que vai te amar tanto quanto eu. Não posso mais te esconder isso. Infelizmente não posso ficar com você. Seu pai é seu destino e sua sorte. Um beijo, sua mãe”


Sozinho e apoiado numa muleta de madeira estou agora aqui, no banheiro do hospital, de frente para o espelho a me barbear. Não sei o que faço. Achei que nunca amei ninguém. Coisa estranha. Tive contato com muitas pessoas e nunca senti nada por nenhuma delas como senti por Alice. Estou novamente solitário. Quando melhorar volto pra estrada. Sigo meu caminho, mas me falta algo. Aliso meu São Cristóvão tatuado no peito e peço proteção. Agradeço pelo livramento. Que Deus me proteja. Fui salvo de um acidente e escapei da morte, mas agora sou escravo da saudade.

1 comentários:

Lydia DeSouza disse...

You're a good writer. I enjoy reading your stuff. My mom had told me you were, but its difficult for me to read in Portuguese but you make it easy. If I keep reading your stuff, maybe my literacy in Portuguese will increase...Here's hoping. Keep writing, Guri.

Beijos,

Lydia De Souza